Debora Diniz afirma que interrupção de gestações seria parte de uma ação maior focada 'na garantia de direitos das mulheres'
O grupo de advogados, acadêmicos e ativistas que articulou a discussão sobre aborto de fetos anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, acatada em 2012, prepara uma ação similar para pedir à Suprema Corte o direito ao aborto em gestações de bebês com microcefalia.
Por Ricardo Senra, no BBC
À frente da ação, que deve ser entregue aos ministros em até dois meses, está a antropóloga Debora Diniz, do instituto de bioética Anis, que recebeu a BBC Brasil em seu escritório em Brasília. “Somos uma organização que já fez isso antes. E conseguiu. Estamos plenamente inspiradas para repetir, sabendo que vamos enfrentar todas as dificuldades judiciais e burocráticas que enfrentamos da primeira vez.”
Ela se refere à lentidão do processo – o pedido de avaliação dos abortos para fetos anencéfalos foi feito pela Anis em 2004 e aceito pelos ministros, por 8 votos a 2, em 2012. Mas também às barreiras morais e religiosas levantadas por grupos organizados, igrejas e parte da população.
“Em 2004 não havia uma epidemia nem havia um vetor (como o mosquito
Aedes aegypti). Agora ambos existem e isso torna a necessidade de providências mais urgente”, diz.
“Por outro lado, na anencefalia os bebês não nascem vivos e assim escapávamos de um debate moral. Hoje, sabemos que a microcefalia típica é um mal incurável, irreversível, mas o bebê sobrevive (na maioria dos casos)”, afirma. “Portanto trata-se do aborto propriamente dito e isso enfrenta resistência.”
Em entrevista exclusiva à BBC Brasil e ao programa
Newsnight, da BBC, Diniz diz que a interrupção de gestações é só um dos pontos de uma ação maior, focada na “garantia de direitos das mulheres, principalmente na saúde”.
Na argumentação que apresentará ao STF, o Estado é apresentado como “responsável pela epidemia de zika”, por não ter erradicado o mosquito. Nesse caso, constitucionalmente, as mulheres não poderiam ser “penalizadas pelas consequências de políticas públicas falhas”, entre elas a microcefalia. Portanto, “deveriam ter direito à escolha do aborto legal”, entre outras iniciativas.
Atualmente, a legislação brasileira só permite o aborto em casos de estupro, risco de vida da mulher e quando o feto é anencéfalo. Segundo pesquisa Datafolha divulgada em dezembro do ano passado, 67% dos brasileiros são favoráveis à manutenção da lei. Outros 16% acreditam que o aborto deve ser permitido em outros casos e 11% acreditam que a prática deveria deixar de ser crime em qualquer ocasião.
Argumentos

Os principais eixos do documento que está sendo preparado, segundo a BBC Brasil apurou, cobram ações de vigilância sanitária para erradicar definitivamente o mosquito, políticas públicas de direitos sexuais e reprodutivos para mulheres (contraceptivos, pré-natal frequente e aborto) e ações que garantam a inclusão social de crianças com deficiência ou má-formação por conta da doença.
A microcefalia impede o crescimento normal do crânio durante a gravidez e há 3.448 casos suspeitos sob investigação pelo Ministério da Saúde no Brasil. A doença vem sendo associada ao zika vírus, que já se espalha por mais de 20 países nas Américas.
“Nós vivemos uma situação de epidemia e não podemos ter um ministro que diz ‘nós perdemos a guerra contra o mosquito’ (em referência a declaração do ministro da Saúde, Marcelo Castro). Não, a guerra tem que ser ganha. Essa responsabilidade não é da mulher. Isso é negligência do Estado e gera uma responsabilidade do Estado”, afirma Diniz, também professora na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
O documento que está sendo preparado deve argumentar que a ilegalidade do aborto e a falta de políticas de erradicação do
Aedes ferem a Constituição Federal em dois pontos: direito à saúde e direito à seguridade social.
A argumentação deve ainda destacar a vulnerabilidade específica de mulheres pobres – já que a epidemia ainda se concentra em áreas carentes do país, especialmente no Nordeste.
“É preciso garantir a todas as mulheres, e não só às que têm acesso a serviços de saúde ou podem pagar um aborto ilegal”, diz Debora. “Autorizar o aborto não é levar as mulheres a fazê-lo. Quem tem dinheiro e quer já faz. Justamente quem tem mais necessidade não pode ser privado do direito de escolher sobre a própria vida”, afirma.
Anencefalia
Em 2004, o grupo de Diniz ingressou no STF como uma arguição de descumprimento de preceito fundamental para discutir no Supremo o que via como violações à Constituição pela não autorização do aborto em caso de fetos anencéfalos.
Oito anos depois, a corte determinou que nem mulheres, nem profissionais que realizam abortos nessa condição podem ser punidos. Essa foi a primeira vez na história em que o STF tomou decisão sobre saúde e direitos reprodutivos.
Alto comissário cobrou revogação de leis que limitem a prática
O alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Zeid Al Hussein, pediu nesta sexta-feira (5) a revogação de leis que limitem o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, inclusive o aborto, para fazer frente à disseminação do vírus zika, que pode causar microcefalia em fetos.
do
Jornal do Brasil
“O conselho formulado por alguns governos às mulheres de retardar a gravidez ignora o fato de que muitas não podem simplesmente exercitar o controle sobre si ou em quais circunstâncias engravidar, sobretudo em ambientes onde a violência sexual é tão comum”, diz uma nota assinada pelo chefe do Acnudh.
Segundo ele, os esforços para conter o zika não serão potencializados apenas com conselhos para atrasar a decisão de ter um filho. “Muitas das questões-chave giram ao redor do fracasso dos homens em apoiar os direitos das mulheres, e uma série de medidas fortes deve ser tomada para enfrentar esses problemas a fundo”, acrescentou.
O alto comissário declarou ainda que os serviços de saúde sexual precisam incluir a contracepção, incluindo a de emergência, a assistência sanitária materna e o aborto. No Brasil, dar fim à própria gravidez já é permitido em casos de estupro, mas algumas personalidades, inclusive o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão (PSB-RJ), defendem que mulheres tenham direito de abortar fetos com microcefalia.
A potencial relação entre a má formação cerebral e o zika motivou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar estado de emergência internacional contra o vírus.